Diferenças elementares entre a “contabilidade pública” e a “contabilidade privada”.

Antes de mais nada: o que é contabilidade?

“Contabilidade é aquele negócio que morde e assopra: primeiro dedura o quanto devemos de imposto de renda, depois, às vezes, ajuda a restituir uns trocados.” Ou, quiçá, “contabilidade é aquela coisa que serve para ajudar na obtenção de uns créditos junto à praça com aquele negócio que comprova os rendimentos”. Mas talvez contabilidade seja simplesmente a profissão do contador, “aquele cara que quebra um galho danado na hora de se abrir uma empresa, vive atolado em papeis, pensando em números, tem uma HP 12C de estimação, gosta muuuuuito de matemática, não come nem dorme…”

Essas definições não ajudam muito, não é? De fato, esses (pré)conceitos emanados do senso comum não são de total inverossimilhança, no entanto também estão por demais longe da verdade. Definir contabilidade, como já se pode notar, não é uma tarefa tão simples quanto parece à primeira vista. Talvez isso se deva por ser a contabilidade um produto do seu meio, significando que muito de sua imprecisão conceitual deve-se à sua característica volátil: a contabilidade sofre influência e limites que variam no tempo. Muitas foram as escolas que contribuíram para o desenvolvimento do pensamento contábil, como, por exemplo, as escolas europeias (contista, personalista, controlista, aziendalista, patrimonialista etc.) que muito influenciaram os últimos séculos e, mais recentemente, a escola norte-americana, que atualmente mais exerce influência, e não é por acaso.

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Szuster et al. (2013, p. 15, grifo dos autores) definem a contabilidade como sendo “a ciência social que tem por objetivo medir, para poder INFORMAR, os aspectos quantitativos e qualitativos do patrimônio de quaisquer entidades”. Esses autores comparam a contabilidade a uma indústria cuja matéria-prima seriam os dados econômico-financeiros que, uma vez captados pelos registros contábeis e processados de forma ordenada, têm como produto final as Demonstrações Contábeis (também conhecidas como demonstrações financeiras).

Dessa forma, do conceito de contabilidade depreende-se o seguinte:

Objeto: o patrimônio das entidades, que também é estudado por outras ciências tais como economia, administração e direito. No entanto, cada ciência possui um enfoque diferente; no caso contábil, o enfoque é quantitativo e qualitativo e é compreendido como o conjunto de bens, direitos e obrigações.

Objetivo: “medir para poder informar”, ou seja, gerar informações úteis para as tomadas de decisão a partir da mensuração e evidenciação dos fatos econômico-financeiros.

Campos de atuação: os campos de atuação contábil podem ser definidos de acordo com a aplicabilidade prática (instituições que utilizam a contabilidade, ou seja, um campo bastante vasto, já que pode englobar pessoas físicas, jurídicas, públicas, privadas etc. que em geral são obrigadas por determinações legais) conjugada com as necessidades dos usuários (isto é, das especificidades de cada grupo). Nesse sentido, podem-se citar:

  • Contabilidade do Proprietário: consiste numa espécie primária de contabilidade, considerada um instrumento diretamente ligado ao dono do empreendimento, cujo objetivo era a proteção de sua riqueza. No processo de “evolução natural” – tanto da contabilidade quanto das relações sócio-econômico-político-legais -, deu lugar à contabilidade financeira.
  • Contabilidade Financeira: também denominada externa ou societária, regida no Brasil atualmente pela Lei 6.404/76 (e alterações posteriores) e pela legislação comercial, surgiu na Revolução Industrial como consequência de grandes negócios que passaram a ser financiados. É bastante relacionada à prestação de contas e, justamente por isso, é focada nos usuários “de fora” da organização, isto é, externos.
  • Contabilidade Gerencial: ou interna, não possui regulamentação específica. Pode ser utilizada como complemento à contabilidade financeira, auxiliando os gestores face à natureza estratégica de algumas informações de sua alçada que, portanto, em geral são divulgadas somente aos usuários “de dentro”, especialmente  aos de órgãos superiores. Difere dos demais campos, ainda, por ser facultativa.
  • Contabilidade Fiscal: no caso das entidades privadas é regida há muito pela legislação tributária, tais como o RIR/99, ICMS/Estados, ISS/Municípios etc.; no caso das entidades públicas, é regida especialmente pela Lei 101/00, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal. Tal como a contabilidade financeira, é voltada a usuários externos, ao fisco em especial, mas que também pode ser do interesse dos gestores para fins de planejamento tributário/redução legal da carga tributária.
  • Contabilidade Orçamentária: até hoje é confundida com a contabilidade pública, tanto pelos geradores quanto pelos usuários da informação, regida especialmente pela Lei 4.320/64. Trata-se de um subsistema contábil utilizado em especial pelas entidades governamentais, devido às imposições legais. “Matematicamente”, é um “subconjunto” do “conjunto-contabilidade pública”.
  • Contabilidade de Custos: também conhecida como contabilidade industrial devido ao seu surgimento relacionado às necessidades da indústria, é considerada um ponto intermediário entre a contabilidade financeira e a contabilidade gerencial. Se considerarmos estes dois campos contábeis como conjuntos matemáticos, a contabilidade de custos seria a “intersecção” entre aqueles dois. Este campo contábil não mais se restringe apenas ao ramo industrial.

Usuários: os “stakeholders“, isto é, aqueles interessados na informação contábil, individualmente ou em grupo, podendo ser internos ou externos em relação à entidade, como, por exemplo, clientes, fornecedores, empregados, credores, acionistas, governo, comunidade, diretores etc. Destacam Aquino e Santana (1992 apud RIBEIRO FILHO et al., 2009, p. 59), baseando-se na American Accounting Association, que “o grupo de usuários da informação contábil congrega, inclusive, aqueles que não recebem estas informações, mas que podem ser afeados pela ação daqueles que de alguma maneira as recebem e as utilizam”.

Outra comparação interessante é a feita por Ribeiro Filho et al. (2009, pp. 333-5), quando afirmam ser a contabilidade uma espécie de linguagem, ou melhor, uma linguagem de negócios, cujo papel “é facilitar a percepção das características relevantes de certos eventos econômicos, levando aos usuários das informações contábeis conhecimentos necessários à otimização de suas decisões”. Nesse sentido, constituindo-se a contabilidade como uma língua, que, afinal, existe para que haja comunicação, o contador atuaria como emissor/transmissor dos eventos econômicos por ele identificados, interpretados e codificados (e, por que não, reinterpretados?…).

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Fonte da imagem: AlfatecSistemas

Ribeiro Filho et al. (2009, p. 58, grifo nosso), ao analisar diversos conceitos de contabilidade (MACFARLAND, 1957; AMERICAN ACCOUNTING ASSOCIATION, 1966; SALMONSON, 1977; GLAUTIER; UNDERDOWN, 1986; SÁ, 2008), concluem que “a contabilidade se inscreve como uma parte integrante de um sistema de informação”, não sendo atualmente mais reconhecida como mera ferramenta para o cumprimento de exigências fiscais (ao menos em teoria, diga-se de passagem), e sim como geradora de informações relevantes para a tomada de decisões de uma vasta gama de usuários.

Segundo a Estrutura Conceitual Básica da Contabilidade, compreende-se por sistema de informação um conjunto articulado de dados, técnicas de acumulação, ajustes e editagens de relatórios que permite:

a) tratar as informações de natureza repetitiva com o máximo possível de relevância e o mínimo de custo;

b) dar condições para, mediante utilização de informações primárias constantes do arquivo básico, juntamente com técnicas derivadas da própria contabilidade e/ou outras disciplinas, fornecer relatórios de exceção para finalidades específicas, em oportunidades definidas ou não.

Depois de tudo: seria a contabilidade uma arte, técnica ou ciência? Vamos com calma… (risos)

REFLEXÃO: se as informações contábeis não atingirem seus destinatários (se ocorrerem falhas na comunicação), ou se atingirem de forma incompreensível (falhas na informação: defasada, irrelevante ou até mesmo dissimulada), quais efeitos produziriam levando-se em consideração que o ato comunicativo tem como objetivo “gerar comportamentos desejados, isto é, provocar reações determinadas”, enfim, “afetar comportamentos humanos”? (BERLO, 1999; MASER, 1975 apud RIBEIRO FILHO et al., 2009, p. 337)

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E MAIS: se as informações contábeis não forem capazes de contribuir para melhorar as decisões de seus usuários/destinatários/receptores, isto é, de possibilitar-lhes um comportamento adequado, eficiente e eficaz diante de problemas econômico-financeiros, qual a razão de existirem?

Estas reflexões induzem a lembrar do processo de convergência às normas internacionais de contabilidade (motivações, objetivos, etc.) ou pelo menos sugerem um aprofundamento em tópicos específicos da teoria de sistemas, teoria da comunicação e semiótica. Mas isso é assunto para outra hora.

– CONTABILIDADE “PÚBLICA” x “PRIVADA”.

Para melhor entender as diferenças entres essas duas grandes divisões da ciência contábil, é necessário abordar o seu campo de atuação/aplicação que, por sinal, é bastante amplo, afinal a contabilidade controla os atos e fatos administrativos de qualquer entidade, seja ela física ou jurídica, pública ou privada, com ou sem fins lucrativos.

Segundo Ramirez (1992 apud RIBEIRO FILHO et al., 2009, p. 194, grifo nosso), “a Contabilidade é um sistema de informação de caráter universal e tem sua origem no mundo empresarial que compreende a utilidade dessas informações para a administração dos negócios”. Tradicionalmente, no entanto, as instituições públicas estiveram bastante focadas (senão unicamente centradas) no controle orçamentário.

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Fonte da imagem: Estadão.

Para Kohama (2013, p. 25), a “Contabilidade Pública é um dos ramos mais complexos da ciência contábil e tem por objetivo captar, registrar, acumular, resumir e interpretar os fenômenos que afetam as situações orçamentárias, financeiras e patrimoniais” das entidades públicas, que precisam atender à legislação contábil específica, como é o caso da Lei 4.320/64 e da Lei de Responsabilidade Fiscal.

A contabilidade do mundo dos negócios, por sua vez, regida por uma vasta legislação tributária, por mercados muitas vezes competitivos e por normas específicas de governança tem nos ramos denominados “contabilidade gerencial”, “contabilidade financeira” e “contabilidade fiscal” os maiores provedores de informação (SZUSTER et al., 2013, p. 17).

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Fonte da imagem: InformaMídia.

Obviamente, as demandas particulares das entidades de naturezas distintas (como é o caso das públicas x privadas) requerem “adaptações” das técnicas contábeis de maneira que as necessidades específicas possam ser adequadamente atendidas. Entretanto, o enfoque orçamentário do qual se utiliza a “contabilidade pública” (ou contabilidade aplicada ao setor público, como alguns preferem chamar), por exemplo, não é de sua exclusividade, bem como não é exclusividade da “contabilidade privada” o enfoque gerencial (ou pelo menos não deveria ser…).


BIBLIOGRAFIA

IBRACON – Instituto dos Auditores Independentes do Brasil. <AUDITORIA – Registros de Uma Profissão> Disponível em: (clique sobre o nome da obra). Acesso em: 29/08/17.

KOHAMA, Helio. Contabilidade pública: teoria e prática. – 13. ed. – São Paulo: Atlas, 2013.

RIBEIRO FILHO, José Francisco; LOPES, Jorge; PEDERNEIRAS, Marcleide. [Org]. Estudando teoria da contabilidade. São Paulo: Atlas, 2009.

SZUSTER, Natan; CARDOSO, Ricardo Lopes; SZUSTER, Fortunée Rechtman; SZUSTER, Fernanda Rechtman; SZUSTER, Flávia Rechtman. Contabilidade geral: introdução à Contabilidade Societária. – 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2013.

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