Assédio Eleitoral

Prazeroso e reflexivo texto de Jorge Luiz Souto Maior, juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), intitulado “Assédio eleitoral”, publicado no blog da Boitempo Editorial em 25/10/14. Para além da abordagem política, imprescindível se faz a leitura do texto na íntegra, sobretudo devido à pertinente e sensata alusão feita às relações de trabalho existentes, apesar de ocultas, em nossa sociedade. Uma aula! Temas como este sim deveriam ser discutidos politicamente e passados nos meios de comunicação, não as encenações teatrais por parte dos candidatos a que assistimos. Eu não poderia deixar de registrar que, em contraposição à ideologia que se impõe, seu amigo que votou 13 não tem menos culpa do que você, que votou 45, pelos erros cometidos ou a vir se efetivar pelo PT, assim como os erros cometidos anteriormente pelo PSDB não foram da exclusiva responsabilidade dos que votaram a favor daquele governo (nem seriam agora, na hipótese deste ter sido eleito dia 26). A sua responsabilidade não se resume a apertar um botão. Isto seria muito cômodo, não?! Portanto, mãos à obra e chega de intrigas estultas. O governo não será exercido para 51,64% dos eleitores, mas para todos, inclusive para os que se abstiveram, se queira ou não. A responsabilidade é de todos, a culpa pelas merdas feitas/a vir é, em primeira instância, dos que estão no poder (sem cair no erro de esquecer do querido legislativo), contudo se nós não limpamos a sujeira, e existe competência legítima para isso, não há que se incriminar o vizinho, familiar ou amigo pelo mau cheiro alastrado, tampouco se achar a maior vítima simplesmente pelo fato de ter votado em outro candidato. A despeito de minhas convicções apartidárias e de meu voto ter sido, como dizem, “vermelho”, concordo com Rodrigo Constantino, ferrenho opositor do PT e autodeclarado direitista, quando ele justifica que “cada povo tem o governo que merece”. Segue passagem de, dentre outros bem escritos artigos do mencionado economista e colunista da “polêmica” Veja, “A mediocracia brasileira“:

O ditado popular diz que cada povo tem o governo que merece. Por trás desta crença, está o fato de que os governados são sempre maioria, e os governantes são minoria. Logo, algum tipo de aprovação das massas se faz necessário, já que dificilmente a coerção sozinha seria suficiente para manter um povo inteiro servil. Em outras palavras, a cultura predominante num determinado povo é fundamental para o tipo de governo que ele terá. As instituições são cruciais, mas os pilares que sustentam um governo estarão sempre na mentalidade dominante dos governados. Os políticos acabam sendo um reflexo do povo. Quando este abraça os valores errados, não adianta sonhar com um messias salvador. Os valores é que devem mudar.

Dito isso, podemos entender melhor o lamentável contexto atual do Brasil, onde a insatisfação com a classe política é total por parte dos que ainda alimentam um ideal moral. De fato, o cerne da questão está enraizado em locais mais profundos. Trata-se de um problema estrutural, de um apodrecimento dos próprios valores da sociedade. Não adianta apenas criticar este ou aquele governo, ainda que seja um dever moral de todos os que buscam melhorias apontar qualquer empecilho para a meta.

Sem mais delongas, voltemos ao Assédio Eleitoral.

Jorge Luiz Souto Maior in verbis:

[…]

Qual o resultado concreto do processo eleitoral? O que se viu ao final foi uma distensão muito grande entre as pessoas, chegando mesmo a dividir famílias. Neste sentido pode-se perceber que foi eficiente a tática de transferir para os eleitores a responsabilidade pelos problemas do país, como se votar em um candidato ou outro tivesse o efeito de avalizar tudo que estes, ou seus Partidos, fizeram ou prometem fazer.

Para que as pessoas assumissem tal postura foi desenvolvida uma campanha midiática sem precedentes de um convencimento tal que na verdade cumpriu o papel de tornar cada eleitor uma espécie de cúmplice dos erros cometidos pelos governantes – já que os dois candidatos já assumiram essa posição e representam Partidos que estão no poder.

Foi assim, por exemplo, que os eleitores, dependendo do lado adotado, foram forçados a assumir para si lógicas das propagandas eleitorais, como as de que corrupção não é tão importante se algo de bom se fez; que corrupção não é grave, pois sempre existiu; que só é condenável a corrupção que os outros fazem; que o que se fez no passado não importa; que os erros do presente são irrelevantes diante das promessas para o futuro; que o desemprego é um problema de gestão (e não de estagnação do capitalismo); que o assistencialismo social é solução para o capitalismo (ou que o assistencialismo é a causa dos problemas do capitalismo); que o desenvolvimento econômico é uma questão de ajuste fiscal; que a troca dos governantes é essencial para a realização de mudanças (ou que a manutenção dos governantes é primordial para dar continuidade ao processo de mudanças que o país precisa) etc…

Discussões desenvolvidas na órbita da aparência, sem adentrar temas cruciais do debate para compreensão do modelo de sociedade, como, por exemplo, os que dizem respeito ao processo de produção (tratando, sobretudo, da questão da terceirização); à participação dos trabalhadores na renda produzida; à distribuição da riqueza; e, sobretudo, à titularidade dos meios de produção…

Os debates, desenvolvidos na linha da aparência, serviram, portanto, para dissimular a concretude dos problemas do capitalismo – que é, queiramos, ou não, gostemos, ou não, o modo de sociedade em que nos inserimos. A atuação política, que seria essencial para a produção do conhecimento e para a formação de convicções, ainda que relativas, serviu só para gerar preconceitos, ódios cegos e divisões fundamentalistas, baseadas não em argumentos, mas em factoides, em montagens e em versões parciais dos fatos e da história, que chegaram ao ponto de táticas de terrorismo bestializadas, tais como, “se o PT ganhar o Brasil vai virar Cuba”; “se o PSDB ganhar vai voltar o neoliberalismo da década de 90”; “que o PT está promovendo uma revolução socialista” (encarando-se isto de forma positiva por alguns e negativa por outros) etc.

A produção intelectual foi trocada pela arte do disfarce, conforme revelavam, a cada dia, de forma extremamente pertinente, as crônicas de José Simão na Folha de S. Paulo.

[…]

No geral, o processo eleitoral pretendeu nos tornar mais desinformados e mais distantes de análises imanentes, o que, no fundo, talvez seja mesmo a função da democracia burguesa.

Lembre-se, a propósito, o quanto os candidatos fizeram questão de pontuar suas falas na primeira pessoa, “eu”, vangloriando-se do que fizeram e destacando o que farão, se eleitos fossem, mas sempre em questões periféricas e com certo desprezo até mesmo à própria democracia, vez que se referiam a instituições que não criaram sozinhos e que não poderão criar sem as vias democráticas formalmente institucionalizadas, ao mesmo tempo em que, nas questões relevantes, despessoalizavam o discurso, dizendo que promoveriam um “amplo debate” com a “sociedade” a respeito.

Essa forma de diálogo serviu também para potencializar a fragilização da cidadania, que se viu reduzida a uma participação indireta no ato simbólico do voto, posto eletronicamente no contexto de um processo dissimulatório, correspondendo, no campo das relações de trabalho, que é central nesse modelo de sociedade, a um roubo do protagonismo da classe trabalhadora, ou, mais propriamente, da luta de classes, e pretendendo, por consequência, o esvaziamento da relevância da ação política direta, como se verificou nas mobilizações de junho de 2013 e como sempre se vê nas greves dos trabalhadores.

[…]

Com você, a palavra! :)